A cultura do cancelamento é uma expressão que se popularizou nos últimos anos para descrever o “boicote” realizado a uma pessoa, um grupo ou uma marca cuja atitude vai contra o que se considera correto ou aceitável. Embora a literatura especializada não tenha necessariamente se aprofundado na conceituação dessa prática social de “cancelar” o outro, seja no espaço físico ou no virtual, que fez algo considera condenável, há uma ideia mais ou menos consensual de que a cultura do cancelamento esta principalmente ligada ao uso das redes e a comunicação nela proposta para apontar e rejeitar um ato ou opinião que considere impróprio, ofensivo e geralmente tido como negativo, mesmo quando tal ato não resulte em violação da lei ou seja qualificado como crime.
Texeira de Silva indica que a prática do cancelamento não seria eficaz se não fosse o poder das redes sociais, onde a possibilidade de levar qualquer indicação “controversa” ao linchamento mediático é uma realidade graças à rapidez da comunicação, a afluência maciça, à barreira das telas que permitem lançar julgamentos e acusações com a segurança da ignorância real das pessoas que comentam, atacam e minam por sua vez o alvo do momento.
No entanto, o início dessa prática para dar visibilidade a atos tão condenáveis começou com o intuito de evidenciar as injustiças emanadas de grupos de poder e funcionários públicos que, na ausência de uma prática ética e resguardados em certos privilégios que os livravam das consequências legais aos seus atos, a desaprovação social e pública cumpria a função de pressionar e punir o que não fosse possível através dos processos legais e administrativos adequados. Nesse sentido, a visibilidade de minorias que, como já foi dito antes, têm sofrido ataques e desvantagens históricas, encontrou-se uma nova forma de expressar e mostrar ao mundo a posição desfavorecida em que poderiam se encontrar e, a partir daí, atuar para transformar suas condições de vida.
Nos encontramos num momento da história da humanidade bastante complexo de elucidar, não só para nós que vivemos no momento presente, mas também para aqueles que desejam entender a si mesmo no futuro. Um mundo onde os direitos humanos e os do cidadão moderno garantem, ao menos nas normas estipuladas nos textos jurídico-político que regulam a vida social, o autêntico e genuíno direito à liberdade. No entanto, a violência e a insegurança encontraram forma de se instalar nas nossas vidas, não só ameaçando a nossa integridade física, mas também rondando o pensamento e as ideias, numa cruzada pelo domínio ideológico cujo objetivo é que o pensar seja também algo rodeado de medo.
Esta violência não surge de formas ditatoriais ou de imposições verticais, não se expressa de forma imperativa, mas tudo controla. O cancelamento, que tem sido chamado de cultura, uma vez que emerge das expressões sociais humanas e, portanto, dela faz parte, é uma forma tendenciosa de fiscalizar e punir o livre pensamento, apelando para tudo o que não é politicamente correto expresso por meio da oralidade, linguagem escrita, pictórica, gráfica, auditiva e até performativa.
O assunto é árduo, mas nem por isso é menos urgente. É importante destacar que, sem negar minorias sociais ou grupos que historicamente foram submetidos a inúmeras formas de violência como maus-tratos, abusos, repressão, violência física e condições de vida indignas, isso foi transferido para múltiplas áreas de pensamento. A vontade deve agora ser “uma” e também coletiva, condicionando-se a uma única forma de ver tudo e todos, entendendo que para além da segurança dos direitos e garantias dos seres humanos, há questões, temas e tópicos que devem ser socialmente condenáveis para todos e em qualquer circunstância.
O complexidade da cultura do cancelamento é que ela foi levada para áreas onde tudo está suscetível a ser apontado por alguém que, sem ter como bandeira a defesa dos direitos e garantias de homens e mulheres ou de grupos desfavorecidos, usa essa forma de controle social apenas para interferir na reputação de um indivíduo. A opinião emanada da sinalização é radicalizada sem atender às partes envolvidas em igualdade de condições, pois “viraliza” aquela que permite a criação de uma sinalização e, portanto, aquela que possibilita o linchamento do acusado. Esse processo em cadeia geralmente termina na destruição da vida profissional e/ou pessoal de uma pessoa ou na censura e banimento permanente da vida pública.
Nessa linha de raciocínio, a apreciação pública em redes sociais sobre algum assunto em questão, por exemplo, a escolha de vestir roupas de marcas de prestígio ou consideradas de luxo, são por vezes suficientes para falar da pouca empatia que uma pessoa pode sentir face a problemas sociais complexos como a pobreza estrutural ou a objetivação de corpos que por anos mercantilizaram o pensamento capitalista. Sem dúvida, este pode ser um indicador estatístico, mas não pode ser considerado uma condição absoluta para afirmar que todas as pessoas que carregam um item de alto preço -sem considerar que o “alto” dependerá da condição socioeconômica de cada indivíduo- são inconscientes e apáticas aos problemas de seu entorno, nem os impede de serem ou se tornarem sujeitos de mudança social diante dos problemas mencionados. Ressalta-se que, por vezes, as acusações são lançadas de locais que não condizem com aquilo que tão categoricamente desaprovam e onde assumem que os acusados, sobretudo em atos passados, dispunham das mesmas informações e conhecimentos que atualmente dispõem.
A possibilidade de apelar para atos de injustiça não deve ser confundida com a exigência de manter as mesmas ideias, crenças e julgamentos como única forma de viver coletivamente. A coincidência de opiniões, gostos ou ideias não é necessária desde que não afete alguém fisicamente, emocionalmente, legalmente ou no trabalho. Que cada um veja uma forma de vestir, falar, colorir, divertir-se ou relacionar-se da melhor forma, desde que isso não incorra em injustiças que possam ser claramente observadas em foros mais amplos como os propostos por lei. A isso acrescento que, se uma denúncia é encontrada repetidamente em contextos díspares, mas lida continuamente, seria melhor usar todo o poder da linguagem e da comunicação para estabelecer um precedente que permita a defesa de todas as vítimas e não apenas de aqueles com poder de convocação nas redes sociais.
Artigo de: Karina Mora Mendoza. Graduado em História pela UMSNH, Professora e Doutora pelo Colégio de Michoacán. Realiza pesquisas históricas sobre o século XIX em relação ao discurso e uso dele em temas como a história das mulheres e a construção da Nação.
Referencia autoral (APA): Mora Mendoza, K.. (Agosto 2023). Conceito de Cultura do Cancelamento. Editora Conceitos. Em https://conceitos.com/cultura-cancelamento/. São Paulo, Brasil.